Traduções e Adaptações em Mangás/Animes


Dentre os canais do YouTube que acompanho, um dos que mais gosto é o Video Quest. Junto do LBTV, é o meu canal brasileiro sobre animes e mangás favorito da plataforma, tanto que a inspiração para eu escrever esse artigo, assim como várias das informações que serão abordadas aqui, veio do último Shonen Quest, quadro semanal do Video Quest que consiste em realizar uma live stream onde são feitas análises dos últimos capítulos que saíram dos mangás shounens que o Kitsune, fundador do canal, acompanha. Nessa live teve um momento em que ele comentou sobre a citação da editora Shueisha (responsável pela publicação de mangás como One Piece e Boku no Hero Academia) em um dos capítulos de BNHA  pois uma das personagens da trama trabalha para a companhia e a mesma apareceu no último capítulo que foi analisado na live  e como seria interessante e divertido se na versão nacional trocassem o nome da editora original pela que traz a série licenciada para o nosso país, que no caso é a JBC.

Isso deu início à uma longa e complexa discussão envolvendo tradução e adaptação e de pouco em pouco a conversa estendeu-se até tomar grandes proporções, o que deu brecha para a abordagem de assuntos paralelos como Kacchan VS Kazinho, se o "Deku" deveria ser traduzido ou não, hábitos de fansubs, glossários, etc.. Foi um papo interessante, porque Kitsune demonstrou um ponto de vista que achei curioso e intrigante o bastante para abordá-lo aqui, além de ser a razão de eu ter ficado empolgado em escrever sobre esse tema (como dito anteriormente), contudo, mesmo entendendo a lógica por trás, acabei discordando do posicionamento dele em maior parte ao fim de tudo. O ponto central dessa discussão envolve o conflito entre as duas seguintes decisões: a de manter certos nomes/termos em sua forma original e a de traduzi-los para o nosso idioma usufruindo de termos familiares ou de fácil identificação. Sem mais delongas, darei início ao detalhamento do assunto com o propósito de alcançar a melhor interpretação dele após a série de reflexões.


Pra quem não conhece o Video Quest, dê uma olhada. Eu recomendo. :)

Antes de justificar minhas visões, compartilharei as ideias de Kitsune referentes ao tema que foram reveladas no Shonen Quest e comentar sobre elas. Enfim, se há uma palavra capaz de resumir a relevância de toda essa cadeia de reflexões, ela seria "experiência". Segundo o you-tuber, nós, o público brasileiro, nunca teremos a mesma ótica dos japoneses ao assistir um anime/dorama ou ler um(a) mangá/light novel, o mesmo se aplica a outros países. Não tenho o que discordar disso, na verdade é até um pouco óbvio. Dentre as coisas que aprendi jogando Metal Gear, a que mais me fascinou foi a abordagem do tema que trabalha idioma e identidade, isto é, o fato de que cada cultura e cada nação possui diferentes maneiras de enxergar o mundo e de como a linguagem é parte fundamental dessa esfera. Seguindo a linha de raciocínio em questão, as traduções servem não para termos a mesma sensação que o público de origem, mas para garantir algo próximo e quanto mais coisas forem localizadas melhor será, porque assim torna-se possível absorver as obras quase que totalmente imersos dentro dela! 

Kitsune também argumentou que o hábito das fansubs/scans e da editora Panini de manter trechos dos conteúdos localizados em seu estado original estabelece uma espécie de "barreira" que pode não ser um elemento tão espantoso assim (até o próprio Kitsune tem noção dos sufixos japoneses, como "-sama" ou "-san", por exemplo), porém que desorienta alguns leigos e novatos no universo otaku. E não vou mentir, até eu fiquei meio perdido quando comecei a acompanhar animes legendados por fãs e notar padrões que não fazia ideia do que significavam. Levou um certo tempinho até conseguir compreendê-los, somente quando comprei meu primeiro mangá da Panini e ler o glossário do volume entendi do que se tratava toda essa loucura. Voltando ao assunto. As legendas com Karaokes nas aberturas, os sufixos, as notas dos tradutores, por mais legais que sejam são, logicamente, peculiaridades que não estão presentes na maneira como os japoneses consomem animes, logo é um distanciamento dessa experiência que deveria ser trazida ao máximo para nós. Portanto, a citação da editora JBC seria mais que apenas senso de humor, seria uma importantíssima peça envolvida com o trabalho de tradução e localização. Por mais estranhas que essas decisões possam parecer, a imersão realmente é importante durante o aproveitamento da ficção...


Quem mais ficou desesperado quando viu um "-kun" pela primeira vez? :v

Com esses pensamentos em mente, fica bem evidente a impotência dos métodos da editora Panini e dos fansubers. A impressão dada é a de que pra poder acompanhar um título do Japão é preciso ter um "dom" especial e uma porcentagem das informações pode não ser absorvida na experiência sem ele. Os karaokes e as notas dos tradutores podem ser convenientes, no entanto parecem que quebram um pouco a imersão. E lembrando que esse último ponto é mais voltado para animes, em mangás é sempre bom ter notas e informações adicionais em glossários ou nas laterais dos quadrinhos. O padrão que envolve sufixos e termos japoneses escritos em romaji pode desorientar ou assustar alguns no começo e em um breve momento soa como algo desnecessário, quase que uma "frescura" por parte de quem está traduzindo. E essa parte nos leva a outro tópico, a inutilidade. Em battle shounens, as legendas dos fãs costumam deixar os nomes dos golpes intactos e deixando o significado dele como uma nota do tradutor na parte superior da tela, por exemplo. O que eu quero dizer é: tirando o fato de que fica mais fácil de pesquisar os detalhes das habilidades e ser um bom jeito de bancar o hipster/edge para se gabar na frente dos coleguinhas, qual a necessidade disso? E olha que fica pior, às vezes coisas comuns não são traduzidas e isso até acabou proporcionando o nascimento de alguns infames memes, como o "keikaku", que pode ser visto logo abaixo e na capa deste post. Então, ao não traduzir determinados termos e palavras, às vezes obtém-se uma experiência tão não-imersiva que acaba parecendo mais uma aula de japonês!!

Então isso quer dizer que traduzir tudo é a melhor solução e aí o problema estará resolvido?! É claro que não. Seguindo a ótica exposta no parágrafo anterior, traduzir o "Kacchan" para "Kazinho", por exemplo, é tranquilo, mas isso não quer dizer que o "Deku" também deveria? Pois é, isso foi levantado na live stream e foi quando caiu a ficha de que a tarefa de traduzir e localizar uma obra de ficção é um serviço duro. A situação mostrou-se complicada, porque o apelido é um insulto, só que também pode ser encarado como um elogio e algo que incentiva o esforço!!! É difícil buscar uma palavra na Língua Portuguesa capaz de funcionar como uma coisa negativa e positiva ao mesmo tempo, e de bônus o sentido positivo deve indicar "determinação" no fim do processo. E esse não é o único obstáculo na tradução, há outros aspectos complicadíssimos de lidar como trocadilhos, jogo de palavras, dialetos, gírias, palavras pronunciadas/escritas propositalmente erradas e, é claro, hábitos culturais com significados complexos, detalhe esse que é aonde eu quero chegar.


URUSE, BAKAAAAAAA!!!!!! (Nota do Bill: CALA A BOCA, IDIOTAAAAAAA!!!!!!)

Para deixar claro de vez, sou do time que prefere que certos nomes e conceitos permaneçam na forma original. O motivo é simples: várias vezes isso pode influenciar na forma como a obra é absorvida. Por exemplo, imaginem que em um mangá de comédia escolar um garoto chama uma tomboy de *****-kun e ela fica brava com isso, porém os dois continuam a conversa casualmente. Sabendo que o sufixo em questão pode indicar que ele a enxerga como uma igual ou como um garoto, a partir daí vem o sentido da piadinha/reação dela, onde a personagem se incomoda em ser chamada de menino apesar de ser bem masculina. A pergunta é: como adaptar isso para o nosso idioma utilizando apenas um nome, prefixo ou sufixo (vai que o balão de fala é pequeno)? Colocar o personagem para chamá-la de Marcão ou Carlão ficaria zoado demais e duvido que alguém em nosso país faça algo do tipo (ainda mais lembrando que as tomboys em mangás/animes geralmente continuam bem femininas, o que as distancia do conceito de mulher-macho ou travesti). Fora que a situação pode ter um sentido mais subjetivo, afinal o "-kun" indica outras coisas também, além do exemplo já citado, há a interpretação de que talvez o cara enxergue a menina como uma subordinada ou algo próximo, logo surge outra interpretação, a de que ela não gosta de servir à ninguém e tals. Entre outras palavras, a decisão de tentar adaptar a cena para o cenário nacional quebraria com a profundidade da obra e, como visto, essas escolhas dão resultados piores em títulos que seguem a filosofia de "mostre, não conte". É complicado...

Por isso que eu adoro os glossários da Panini, eles várias vezes nos contextualizam para diferentes tipos de situações similares e aproximam os leitores de uma experiência próxima à que o público japonês tem, isto é, torna para nós certos pontos estranhos (a princípio), mas importantes, em algo mais natural e que o autor supõe que o público que está consumindo seu trabalho também saiba deles. Esse último ponto me deixou bem intrigado, porque contraria o argumento do Kitsune de que sem as "barreiras" temos uma experiência próxima à dos japoneses. Aos meus olhos, manter determinados termos e palavras no estado original não é uma ação totalmente desnecessária. Ela evita riscos, quero dizer, fazendo isso há uma probabilidade menor do título ter suas mensagens distorcidas ou perdidas no meio da tradução. Sem contar que quando se assiste muitos animes várias coisas tornam-se inevitáveis e muitas palavras constantemente repetidas ficam familiares aos nossos ouvidos, isso é até bom, pra ser sincero, pois acaba sendo possível aprender um novo idioma com algo que se gosta. Contudo, onde se encaixam os sufixos e outras coisas nessa história? Como tornar isso acessível?? Bom... Na verdade isso já é bastante acessível! Qualquer mangá da Panini (menos Berserk, pelo que sei, somente esse é exceção) tem glossários contendo essas respostas e pesquisar "sufixos japoneses" em qualquer site de busca na Internet já dá conta do recado, no entanto quero comentar sobre um comentário um tanto quanto questionável que eu vi no chat do Shonen Quest:


Desculpa, cara. Mas fiquei um pouco chateado com teu comment...

Sim, o leigo vai se sentir desorientado. Sim, ele não vai entender. SIM, o mesmo vai estranhar pra caramba, principalmente o que não gosta muito dessa cultura, mas que decidiu dar uma chance. Entretanto isso é só questão de tempo! Informações úteis estão por aí espalhadas pela rede e pelo mercado, depois de adquiri-las o próximo passo é SÓ ASSISTIR MAIS ANIMES!!! Há coisas que iniciantes não vão entender no momento, há coisas que ainda aprenderão com o tempo, há padrões que ainda não reconhecerão, porém isto é o básico do aprendizado. Nem todo mundo vai apresentar a mesmíssima bagagem cultural, ainda mais os novatos que  fazendo uma comparação grosseira  são equivalentes às crianças entrando no Prézinho. É um processo que leva tempo e dedicação, um elemento que depende do nível de dedicação de cada um e do quanto estão dispostos a investir nessa indústria e conhecer mais sobre a mesma. Sabendo disso tudo, é possível observar que acessibilidade não é um problema tão alarmante envolvendo o assunto que está sendo discutido.

Sobre a falta de interesse nos glossários... Há uma solução simples. Sim, reconheço que é algo que merece atenção com o propósito de receber um aperfeiçoamento, mas no geral a minha vontade de lamentar é maior no momento... O "update" que me refiro é dar uma ênfase maior nos glossários por parte das editoras. Para guiar melhor os novatos, seria bom se houvesse um destacável painel indicando a presença dos glossários e explicando sua relevância para o consumo daquele produto, similar àqueles típicos avisos na última página de um volume takoubon que explica o sentido de leitura oriental e ensina a leitura dos painéis e dos balões de fala do mangá. Todavia isso não passa de um mero detalhes minúsculo, pois os glossários da Panini são claros, diretos e dinâmicos. A explicação para cada conceito é breve e informativa, é possível absorver bastantes informações somente com as poucas palavras selecionadas para atender esse pedido e, consequentemente, não acumulam-se muitas páginas seguindo esse padrão. É sério que existem pessoas que não vão atrás de algo assim?? O quão preguiçoso o público brasileiro consegue ser??? Eu estranho muito isso, ainda mais quando lembro que devorei cada glossário que havia na minha frente quando comecei a colecionar mangás!!! Sei que várias coisas importantes são meio complicadas de ler (não vou ser hipócrita), como bulas de remédio e livros didáticos, só que esse não é o caso dos glossários da Panini.


Só tem 4 linhas e no máximo 4 palavras em cada uma! Como alguém pode ignorar isso?? É super simples!!!

Sobre minha concepção, o melhor método para resolver esse conflito de ideias seria traduzir mantendo sufixos, prefixos e outros detalhes de relevância com a escrita de origem. Às vezes não traduzir certas palavras e colocar uma nota de tradutor realmente pode parecer exagero ou preguiça, afinal podemos aprender algumas palavras apenas ouvindo e lendo o que significam na legenda... Tá, podemos também não saber com exatidão a pronúncia e muito menos a escrita em roumaji ou em hiragana/katakana, porém não é todo mundo que vai querer aprender japonês de qualquer forma, isso depende da determinação e da vontade de cada um. Tentar traduzir 100% das coisas é extremo também, vai chegar num ponto onde esses atos proporcionarão riscos para as obras e mais cedo ou mais tarde chegará num limite. No fim das contas é meio ridículo tentar localizar nomes de personagens e as palavras inventadas não estão sujeitas à essa necessidade. Quanto à acessibilidade, aqui encontramos um problema... Os glossários estão aí para atender a demanda e adquirir as informações básicas não é algo impossível ou fora da realidade. A solução realmente é o equilíbrio, não ir muito para um lado e nem para o outro, somente assim entraremos em um consenso capaz de abrir nossas mentes e pensar em novas maneiras de proporcionar a melhor experiência para os entusiastas da cultura de mangás e animes.

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